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Por que experts não funcionam em Agilidade?

Quem não ama um estudo com

números?

O cientista político Philip Tetlock estudou 284 pessoas que ganham a vida fazendo comentários ou prevendo tendências em política e economia. Nesse grupo havia jornalistas, analistas de inteligência, especialistas em política externa etc. Durante duas décadas Tetlock foi pedindo para que essas pessoas fizessem previsões dentro de seus campos de atuação. Quem seria eleito numa determinada eleição, se o Apartheid terminaria de forma pacífica, se o Quebec se separaria do Canadá e se a bolha das .com iria estourar, dentre outras. Ao fim do estudo, Tetlock havia juntado 82.361 previsões feitas por "experts". O resultado? Os experts tiveram uma performance pior do que se tivessem simplesmente sorteado as respostas para cada pergunta. Essas pessoas tinham anos de estudo nas suas áreas e ganhavam a vida fazendo esse tipo de análise e previsão.

Num jogo de tênis ou xadrez é possível repetir movimentos e jogadas milhares de vezes, e receber feedback imediato sobre o resultado. Com isso é possível aprender e evoluir sua habilidade com pequenos ajustes que vão se compondo ao longo do tempo. Com tempo suficiente, as tais 10.000 horas que ficaram famosas pelos livros der Geoff Colvin, Malcolm Gladwell e Daniel Coyle, é possível ser um tenista ou enxadrista de nível mundial. Mas isso não é possível em campos como análises políticas e econômicas. No entanto, os eventos que essas 284 pessoas analisaram são únicos, elas não tiveram como praticar muitas vezes e obter feedback. Mesmo que o contexto pareça similar, existe um ambiente sócio-político único para cada um desses eventos. Ao analisar mesmo algo tão específico quanto eleições para governador num mesmo estado na mesma década, os quatro anos entre uma eleição e outa trazem mudanças que, por menor que sejam, afetam o resultado final.

Modelos de gestão e de decisão como aqueles contidos debaixo do guarda-chuva da Agilidade caem na categoria das análises político-econômicas estudadas por Tetlock. Não é possível aprender com o feedback de tentar usar Scrum numa organização pois a cada dia a ela muda um pouco. Pior ainda seria tentar usar o que foi aprendido em uma organização, num determinando contexto sócio-temporal, em outra organização. Não quero dizer que não é possível evoluir o uso de um método de trabalho ou modelo de gestão, mas que não é possível se tornar um expert nisso, e ter a capacidade de prever o resultado de uma intervenção na forma de trabalho de uma organização com base no que aconteceu em outra.

Um outro fator importante para que o aprendizado por feedback seja possível é que ele aconteça num ambiente que tenha alguma estabilidade. Se o ambiente muda constantemente, não serve. Se os resultados são aleatórios, como numa roleta ou loteria, tb não. Warren Buffet fez uma aposta com um gestor de hedge funds sobre quem conseguiria maiores ganhos num período de 10 anos. Buffet escolheu um fundo que acompanhava a média de mercado das 500 maiores empresas da bolsa americana, o gestor escolheu 5 fundos de hedge funds que agrupavam quase 200 fundos no total. Esses hedge funds eram gerenciados ativamente, por pessoas altamente capacitadas, para obter ganhos acima da média de mercado. Ao final dos dez anos o fundo de Buffet tinha tido um crescimento de 125,8% contra apenas 36% dos fundos ativamente gerenciados pelos especialistas. Isso aconteceu, porque ao contrário do que muita gente acredita, o mercado é um ambiente praticamente aleatório, e num ambiente assim não há como um expert aprender e performar melhor. Num período de 10 anos 80% dos fundos ativamente gerenciados não conseguiram ser melhores do que a média do mercado. Numa situação assim a gente costuma culpar as pessoas e ignorar o efeito do ambiente. Preferimos pensar que esses especialistas do grupo de 80% não são tão bons. Bons são aqueles 20% que superaram o mercado, afinal é assim mesmo, a maioria das pessoas não é capaz, apenas um pequeno grupo é. Mas a verdade é que aqueles 20% só deram mais sorte. Ainda assim, a nossa mente naturalmente tenta achar padrões onde só existe aleatoriedade e isso prejudica a forma como entendemos o mundo e tomamos decisões. Ou você jogaria os números 1-2-3-4-5-6 na Megasena?


A fábula da Novidade


Existe um formato de consultoria, onde o consultor traz todas as respostas, traz modelos prontos que só precisam ser “implantados” ou traz “benchmarks de mercado”. Sempre que uma organização grande ou famosa adota uma solução o mercado de consultoria corre atrás para replicar essa solução enquanto ela ainda está quente. Muitas vezes mesmo antes da organização original ter tido algum resultado. A notícia corre, algumas expressões bonitas são criadas, às vezes até um logo com setinhas e bolinhas e as empresas de treinamento mais espertas criam certificações. Essas certificações são criadas com pelo menos uns dois ou três níveis, assim mesmo depois de gastar centenas de dólares as pessoas ainda acham que não são capazes de reproduzir aquele modelo, que precisam de algo mais. Com isso cria-se um mercado bem lucrativo que funciona mais ou menos assim:

  1. Cria-se um nome para a Novidade, normalmente com as palavras Design, Lean, Agile/Agility, Framework, Principle, Sprint, Change, Thinking, Scale, Radical, System, Growth etc. Às vezes também se usam palavras em alguma língua que não seja “mainstream” como línguas orientais, latim ou línguas arcaicas e coisas assim.

  2. O novo modelo ganha fama, logo o mercado está postando loucamente (quase sempre posts que se copiam ad nauseum). Podcasts, meet ups e todo mundo quer ser o primeiro(a) a falar da Novidade

  3. As consultorias começam a incorporar a Novidade aos seus ppts de venda. Sócios e vendedores casualmente tomam café com seus clientes citando a Novidade. Isso ajuda a medir a temperatura e testar se ela vai “colar”

  4. Empresas de treinamento correm para lançar seus cursos sobre a Novidade e começam a arrumar um jeito de criar autoridade para a certificação a ser lançada. Normalmente trazem alguém que já trabalhou ou trabalha na empresa de onde a Novidade saiu ou tentam reaproveitar a autoridade de suas outras certificações.

  5. Alguém da empresa que originou a Novidade escreve um livro sobre o novo método e faz um TED Talk. O mercado começa a usar o vídeo do TED Talk como referência sobre o assunto. Alguém faz um infográfico a partir do vídeo. Muitas pessoas fazem vídeos comentando o vídeo.

  6. Organizações começam a sentir que precisam daquilo, uma espécie de FOMO corporativo começa a se espalhar. As mais modernas rapidamente contratam os primeiros consultores sobre a Novidade, começam a aplicá-la do que jeito que dá e divulgam para reforçarem sua imagem de empresa moderna e antenada.

  7. As organizações mais cuidadosas enviam seus colaboradores para fazerem cursos sobre a Novidade. Essas pessoas saem mais confusas do que entraram nos cursos mas correm para tirar suas certificações e com isso tentam ganhar algum destaque dentro das suas organizações. Quando essas pessoas não conseguem “implantar” a Novidade elas convencem suas organizações a contratar os consultores das empresas de treinamento onde fizeram seu curso e se tornaram Certified Professional Novidadeiros(as) .

  8. Inevitavelmente algumas organizações começam a aferir resultados positivos depois de começar a usar a Novidade. As consultorias correm para divulgar cases de sucesso relacionando esses resultados à Novidade, com isso atraindo mais clientes e contribuindo para a ideia de que a Novidade realmente funciona, principalmente se for implementada por essa consultoria especificamente.

  9. Muitas outras organizações não têm resultados tão positivos, mas sentem que as coisas melhoraram um pouco e vão fazendo ajustes à Novidade. Esses ajustes, depois de algum tempo, fazem com que o modo de operação fique muito distante da Novidade original. A organização tem ganhos e consegue resolver algumas de suas questões mais importantes, além de aprender como ir fazendo mais ajustes ao longo do tempo. Alguns colaboradores saem dessas organizações, afinal, elas não estão mais “fazendo a Novidade de verdade”

  10. Outras organizações não têm resultados nada positivos, algumas até sofrem grandes perdas ou mesmo chegam a quebrar. Essas organizações põe a culpa de seus resultados na Novidade e começam a difamá-la em posts, podcasts e meetups. Os colaboradores dessas organizações se dividem em dois grupos. O primeiro grupo reforça a culpa da Novidade, assim eles não se sentem culpados, e são essas pessoas que mais contribuem para a narrativa de que “a Novidade não funciona”. O segundo grupo culpa a organização por não “fazer a Novidade direito”, algumas pessoas desse grupo deixam a organização para buscar lugares onde a Novidade seja aplicada com mais pureza, de forma mais ortodoxa.

Esse ciclo continua até que a Novidade vire mainstream ou praticamente desapareça. As Novidades que se tornam mainstream normalmente ganham variações, atualizações ou versões “para escalar o uso”. Muitas vezes são criadas entidades que regulamentam as certificações, o uso e as versões oficiais da Novidade e segue-se uma guerra sobre quem tem o direito de publicar a versão oficial da Novidade.

Às vezes a Novidade não cresce o suficiente para se tornar mainstream e desaparece ou fica restrita a nichos de mercados. Não é raro que esses nichos sejam extremamente lucrativos e, mesmo sendo desdenhada pelo mercado em geral, a Novidade sobrevive indefinidamente com apenas um punhado de consultorias e empresas de treinamento alimentando-a. Essas Novidades de nicho costumam ter os seguidores mais fiéis e criam uma identidade de “nós contra o resto mundo” ou “só nós sabemos a verdade e precisamos converter os infiéis”.


A bala de prata


Existe um inegável conforto cognitivo ao ver uma solução explicadinha que resolva o nosso problema ou ao se chegar à fatídica “raiz do problema”. Muitas vezes corremos para chegar na solução ou na raiz antes de entender o contexto. O framework Cinefin, proposto pelo Dave Snowden, traz um modelo interessante para sensemaking e tomada decisões em diferentes contextos. É uma forma de entender os tipos de problema que tentamos resolver.

Os domínios do Cinefin que nos interessam aqui são o Óbvio, o Complicado e o Complexo.

No domínio Óbvio temos problemas simples, com soluções conhecidas, onde podemos olhar para um problema e facilmente categorizá-lo em relação ao tipo de solução necessária. Um exemplo são os suportes de primeiro nível: “Por favor, tire o modem da tomada, conte até dez e coloque de volta”.

No domínio Complicado a situação é diferente. A conexão entre a consequência de um problema e a sua causa não é tão óbvia. Esse é o domínio onde os experts brilham. Um exemplo seria o conserto de um veículo: A luz do ABS do meu carro estava acesa, o que poderia indicar um problema no sistema de freios. No entanto, após uma extensa análise e algumas tentativas, o mecânico chegou a conclusão de que havia um curto-circuito no sistema elétrico do carro que estava sobrecarregando e queimando o módulo do ABS.

No domínio Complexo o nível de incerteza cresce ainda mais e já não é possível ligar uma consequência à sua causa. É preciso começar experimentando e, a partir do resultado do experimento, inferir alguma linha de ação. É neste domínio que vivem muitos dos problemas de desenvolvimento de software e praticamente todos os problemas de gestão. Não se sabe o que não se sabe. Nesse domínio é preciso usar abordagens como Pensamento Sistêmico, processos de aprendizagem organizacional etc.

Como toda boa ideia, o Cinefin pode ser mal utilizado. Experts tentam puxar os problemas para o domínio do Complicado, pois assim a sua abordagem de analisar e trazer uma resposta pode funcionar. Muitas das questões que agilistas tratam no dia a dia realmente estão no domínio Complicado e podem ser resolvidas dessa forma, principalmente por agilistas mais experientes que já tiveram experiências com essas questões antes. O problema começa quando se tenta trazer muitas soluções prontas para um contexto organizacional onde os domínios Complicado e Complexo se misturam. E quanto mais pronta é uma solução, maior o conforto cognitivo e, portanto, maior é a vontade de fazê-la funcionar. Nem que se seja na marra.

Mudanças na estrutura organizacional dificilmente saem do domínio Complexo pois elas envolvem inúmeras funções, interesses e dinâmicas dentro da organização, mas também são afetadas pelo mercado que a cerca. Olhar para mudanças organizacionais como questões Complicadas, onde experts podem fazer sua abordagem tradicional de sentir, analisar e responder, costuma gerar mudanças que podem até ter sucesso em indicadores pontuais e por um determinado período, mas inevitavelmente vão afetar os sistemas da organização de maneiras imprevistas e imprevisíveis. Por conta disso é que experts se apressam em definir “métricas de sucesso” para seus projetos de mudança organizacional. Esses projetos focam apenas naquilo que afeta essas métricas e conseguem uma otimização local, que atinge os objetivos do projeto. O problema é que essa otimização local gera ondas de efeitos colaterais que se espalham pela organização sem muito controle ou visibilidade. Quem nunca passou por reorganizações que aumentam as vendas, mas diminuem a qualidade das entregas? Ou que passam a entregar projetos no prazo e dentro do orçamento, mas destroem a satisfação do cliente?


Conclusão


Acho que até esse ponto já foi possível demonstrar o quão danosa é a abordagem tradicional dos experts em contextos de Complexidade. Organizações ganham pequenas vantagens e batem metas de curto prazo, mas sacrificam sua longevidade. Ninguém tomaria um remédio que alivia rapidamente a dor de cabeça mas destrói seu fígado no processo, ainda assim é exatamente isso que os experts estão fazendo com as organizações.

Não existe uma solução única, mas uma abordagem que conduza a organização por um processo de aprendizagem e evolução sistêmica, observando os efeitos das mudanças de maneira ampla, revertendo e mudando a direção das intervenções de maneira ágil, leve e descentralizada, me parece ser algo mais alinhado com os casos de sucesso que conhecemos.

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